Este ano, em novembro, comemoraremos os cento e vinte anos do nascimento de Anita Malfatti(foto acima), considerada por muitos como a protomartir do modernismo brasileiro. A bem da verdade, Malfatti foi, usando uma linguagem mais atual, a primeira que deu a "cara para bater", expondo em 1917 em São Paulo, pinturas e desenhos que surpreenderam alguns, chocaram outros e agradaram a muito poucos. Saliente-se que à época, a elite paulistana estava por demais aferrolhada ao academismo europeu, e não conseguia entender ou aceitar, algo que não pertencesse a essa linha. A carga de aprendizado e vivência com a arte de vanguarda que Anita Malfatti absorveu na Alemanha e posteriormente nos EUA, lhe valeu isto sim, a verdadeira maternidade e o pioneirismo do modernismo brasileiro. Por mais que a pena marota de Monteiro Lobato, tenha sido quase que mortal para a pintora em seu artigo "A Propósito da Exposição Malfatti", não podemos negar a esta grande artista o seu devido lugar na história. Aliás, existe uma tradição que diz que a iniciativa do artigo de Monteiro Lobato partiu de um pedido do tio da artista, George Krug, que apesar de padrinho e apoiador das viagens e iniciativas de Malfatti, não suportava a "nova arte" apresentada pela sobrinha. Lobato, teoricamente, como também não morria de amores pelo dito "modernismo", aproveitou a oportunidade e atirou para todos os lados, pois os alvos eram muitos. Os únicos a apoiarem a artista, foram à época os futuros modernistas Mario de Andrade, que dedicou um poema à pintura "O Homem amarelo", exposta na ocasião, e Oswald de Andrade, que publicou um artigo em apoio a Malfatti, no dia seguinte ao do encerramento da mostra. A verdade, é que o ocorrido ofuscou muito do brilho que a artista merecia, fazendo inclusive com que Anita Malfatti se recolhesse e praticamente abandonasse aquela forma de pintar, executando na maioria das vezes trabalhos próximos do que poderíamos chamar de convencional. Participou posteriormente, com Di Cavalcanti, John Graz, Zina Aita e outros pintores, da Semana de Arte Moderna de 1922, com parte das obras da exposição de 1917 e também algumas obras que produzira após a fatídica exposição de 1917 mencionada, frutos de pesquisas na arte modernista, mas sem o mesmo ímpeto da fase inicial. Após a "Semana", em 1923, como bolsista do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, foi para a Europa e lá permaneceu por cinco anos, pintando e aperfeiçoando principalmente o desenho, desenvolvendo uma enorme destreza com a mão esquerda, uma vez que sua mão direita possuía uma má formação de nascença, que não lhe permitia ser usada, outro grande complexo que Anita carregou durante toda a sua vida. São muitas as fotos onde ela aparece encobrindo a mão direita com um lenço, algum objeto ou simplesmente deixando-a por trás do corpo. De qualquer forma este defeito, se assim poderíamos chamar, não a impediu de gerar obras maravilhosas ao longo de toda a sua carreira.
Após seu retorno do Velho Continente, Anita se dedicou ao ensino de pintura, que lhe garantiu parte do sustento, e à pintura principalmente das paisagens brasileiras onde as cenas de interior com seus habitantes e seus costumes e festas, tem lugar de destaque. A obra acima, "Carro de Boi", é um exemplo muito bom do trabalho dessa época. Interessante notar o toque modernista, onde os bois e o próprio condutor do carro, executados em tons de cinza, contrabalançam e contrastam com o casebre e a vegetação, executados em toques rápidos e precisos, numa paleta de ocres e verdes suaves, que nos fazem sentir o cheiro da mata e o odor da terra, além de ouvir o ranger das rodas do carro de boi no seu movimento lento e duro pelo caminho empoeirado. A obra de Anita Malfatti é poesia, soneto heróico composto à revelia, onde talvez sua grande algoz fosse ela mesma.
Sua produção foi intensa e enorme, pois, além das aulas, vivia de sua pintura, tendo participado também de inúmeras exposições, inclusive da Família Artística Paulista, I Bienal de São Paulo e da VII Bienal de São Paulo de 1963, na qual teve sala especial. O MASP apresentou uma retrospectiva sua em 1949, onde algumas das obras da exposição de 1917, a chamada fase expressionista, estavam presentes, juntamente com obras da fase européia da dec. 20 e paisagens, flores e retratos das décadas de 30 e 40.
Acabou seus dias vivendo entre o apartamento de São Paulo e a chácara de Diadema, a qual retratou algumas vezes, como na pintura mostrada acima, executada na maneira impressionista, em toques rápidos, muito precisos e com "impasto" generoso, traduzindo para a tela um realismo fantástico, de um sol que ilumina e cora, não só a pele mas a lembrança, de uma vegetação vasta cuja sombra acolhe, refresca e descansa, quem do pequeno solar como Anita, viu o céu se abrir e Deus proclamar: Vem artista, vem pintar, que hoje aqui em cima é dia de festa e dança!
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